O “COMPLEXO DE GABRIELA” E A CONFUSÃO ENTRE SER VERDADEIRO E SER MAL EDUCADO

 


AUTENTICIDADE OU GROSSEIRIA? O “COMPLEXO DE GABRIELA” E A CONFUSÃO ENTRE SER VERDADEIRO E SER MAL EDUCADO

Por Marcelo Solidade

No ambiente corporativo contemporâneo, marcado por mudanças constantes, exigências de adaptação e crescente valorização da diversidade, emerge uma tensão entre o discurso da autenticidade e a necessidade de convivência empática. Expressões como “sou assim mesmo” ou “falo a verdade doa a quem doer” são frequentemente ouvidas como justificativas para comportamentos ríspidos, inflexíveis ou desrespeitosos. Essa postura remete ao que, na cultura brasileira, foi denominado de “complexo de Gabriela” — uma resistência identitária à mudança, baseada na ideia de que a pessoa “nasceu, cresceu e será sempre assim”.

O Complexo de Gabriela e sua raiz cultural

A origem da expressão remete à personagem Gabriela, do romance Gabriela, Cravo e Canela (1958), de Jorge Amado, posteriormente adaptado para a telenovela da Rede Globo. A personagem, que se notabilizou ficou marcada pela frase da música tema de abertura “eu nasci assim, eu cresci assim, eu sou mesmo assim, vou ser sempre assim”, isso representaria um ideal romântico de naturalidade e espontaneidade. Entretanto, na contemporaneidade, esse ideal é frequentemente reinterpretado de forma problemática: torna-se um álibi para a recusa à autocrítica, ao aprimoramento pessoal e à escuta ativa no ambiente coletivo.

Quando esse “complexo” se manifesta no contexto organizacional, vemos colaboradores e lideranças que rejeitam feedbacks, evitam processos de desenvolvimento e se blindam contra qualquer convite à mudança, sob o argumento de que “não vão mudar quem são”. Isso representa um desafio significativo à construção de ambientes de trabalho colaborativos, inovadores e emocionalmente saudáveis.

A falsa equivalência entre sinceridade e franqueza agressiva

Nos últimos anos, a valorização da autenticidade e da sinceridade tornou-se central no discurso corporativo. Empresas dizem querer “pessoas verdadeiras”, “comunicadores transparentes”, “colaboradores que sejam quem realmente são”. Contudo, muitos indivíduos passaram a interpretar essas diretrizes como carta branca para agir sem filtro, sem empatia e, por vezes, sem educação.

Há uma linha tênue entre ser autêntico e ser insensível. A sinceridade, quando destituída de empatia e inteligência emocional, transforma-se em grosseria. E isso tem consequências sérias no ambiente de trabalho: prejudica relacionamentos, mina a confiança entre equipes e dificulta processos de comunicação eficaz.

A empatia como competência essencial

Ser autêntico no ambiente corporativo não significa ignorar o outro em nome de uma suposta “essência imutável”. Ao contrário, a verdadeira autenticidade profissional exige autoconsciência, humildade e abertura ao crescimento. Significa alinhar valores pessoais com práticas éticas e colaborativas. Implica também reconhecer que todos estamos em constante construção, e que a adaptabilidade não nega quem somos — ela amplia nossa capacidade de coexistir e contribuir.

A empatia, nesse contexto, não é apenas uma virtude moral, mas uma competência estratégica. Saber expressar opiniões com respeito, dar feedbacks construtivos e adaptar a linguagem ao interlocutor não é “falsidade”; é maturidade profissional.

Lideranças e culturas organizacionais: o papel da mediação

Cabe às lideranças e à cultura corporativa o papel de mediar esse debate. Ambientes que premiam apenas a performance individual ou que exaltam o “perfil forte e sincero” sem critérios podem, inadvertidamente, legitimar atitudes autoritárias, preconceituosas ou emocionalmente violentas.

Por outro lado, organizações que investem em formações em comunicação não violenta, inteligência emocional e diversidade tendem a criar espaços mais seguros, nos quais a autenticidade é compreendida como expressão legítima de identidade, mas sempre mediada pelo respeito ao coletivo.

Mudar é amadurecer

O “complexo de Gabriela” representa, no fundo, um medo de mudar. E, no ambiente de trabalho, essa rigidez pode se tornar uma barreira para o crescimento pessoal e institucional. É preciso resgatar o sentido profundo da autenticidade: ser verdadeiro consigo mesmo sem ignorar o impacto que se tem sobre o outro. Sinceridade não é agressão, e empatia não é submissão. Mudar não significa deixar de ser quem se é, mas sim amadurecer o que se é — com consciência, responsabilidade e abertura ao outro.


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